O crepitar da lareira envolvia-me num delicioso torpor, enquanto ia observando um par de sapatilhas velhas que jaziam ao seu lado, tal qual um bibelô de estimação, e me faziam recuar uns tempos atrás, quando ainda eram umas fantásticas e reluzentes “Raid-Light”.
Não sei se pelo ambiente, se pelo delicioso tinto do Douro que ia bebericando, se pelas recordações que entretanto me assolaram, ou pela influência do espírito natalício, comecei a ser invadido por uma estranha nostalgia, que depressa me embaciou o olhar – a minha faceta de lamechas vinha ao de cima e minava-me de saudade.
Aquelas sapatilhas foram as minhas cúmplices em muitas “istórias”. Para ser justo, devo também realçar o inconfundível fatinho laranja, completamente desbotado, carregado de nódoas irreversíveis e polvilhado de remendos (as minhas medalhas), que eu havia pendurado solenemente na chaminé (como obra prima de artista reputado). Afinal são eles as verdadeiras memórias de uma espécie de orientista.
Melancolicamente, as lembranças foram-se sucedendo, como de um filme sem argumento, se tratasse.
O rasgão de cima abaixo na perna direita das calças, que um silvado mais afoito na Serra da Cabreira me descompôs, quase me ferindo perigosamente as recatadas partes. Auréola de manchas na zona traseira, consequência de inúmeras quedas em áreas lamacentas (não o que estavam a pensar), que me fazem sorrir ao visionar a espectacular cena do “lama-board” no Pêgo, durante o POM`06.
Como seria de esperar, episódios de lama não faltaram. Um deles quase me roubava uma das sapatilhas, quando na passagem dum terreno “pegajoso” em Canha, só dei conta que me encontrava descalço, porque pisei umas pedras afiadas. E essa não foi a única ocasião em que estive na iminência de terminar em meias. No POM`07, na inesquecível etapa de Campo de Anta, enfiei um pé entre umas “pedrolas”, só o conseguindo soltar, deixando a sapatilha no buraco. Depois estive de rabo para o ar uns minutos, a tentar apanhá-la com um ramo, enquanto chovia copiosamente (só a mim!).
Ao contabilizar as inúmeras operações de costura que decoram o meu desgastado equipamento, lembro as sofredoras jornadas espinhosas e sobretudo a da luta travada em Eja (Entre-os-Rios) com o feroz tojo “ulex” ou o pânico vivido no caricato fosso de Casal dos Bernardos (a situação mais ridícula da estrondosa carreira do “espécie”).
Os trabalhos de costureira acresciam substancialmente, sempre que surgiam percursos onde as cercas ditavam leis, ficando a etapa de Oledo, na Idanha, designada como a rainha dos arames (e das esfarrapadelas). E por falar em costura, vem-me à ideia um inestético corte no nariz, quando fui fustigado violentamente por um galho, ao progredir de forma atabalhoada pelo meio de mato, no mapa do Bom Sucesso em Peniche.
Outras situações poderiam ter deixado a sua marca, como as valentes “encharcadelas” de que fui alvo, nos dilúvios de Vagos, Gestoso ou Sabrosa, mas uma que de certeza não pode passar à história, foi a resultante do mergulho radical na gélida Ribeira de Cujancas, da Herdade da Lameira, em pleno NAOM`09, ao melhor estilo aventureiro.
O que efectivamente deixou marca, transformando a cor laranja do fatinho num tom mais pálido, foi a demasiada exposição aos fortes raios solares. Ao recordar o sufoco que passei na Lagoa da Vela, em Quiaios, por falta de água ou a canícula que nos atacou, num nacional em Vendas Novas, até me admiro da cor não ter desaparecido totalmente, debaixo de temperaturas bem acima dos trinta graus.
Ao olhar para as solas das benditas sapatilhas, quase com o piso careca, relembro os milhares de “pedrolas” a que tiveram de se “agarrar”, para evitar que o “espécie” fosse vítima de quedas trágicas, o que esteve na iminência de acontecer na exigente Pedra Bela do Gerês. Infelizmente não se mostraram tão eficazes numa jornada tempestuosa na Coelheira, onde uma lamentável escorregadela me atirou para a única baixa por lesão.
Mas era nos terrenos de belas dunas, que elas se portavam lindamente. No entanto, por serem demasiado porosas, permitiam que me atafulhasse de areia, provocando bolhas dolorosas, que me obrigavam a demoradas pernadas nos areais, que os do Palheirão, em Cantanhede, são um óptimo exemplo.
O “espécie” protagonizou extraordinários momentos de orientação, neste género de mapas, mas também é verdade que passou por grandes sacrifícios, nas progressões que envolviam dunas altaneiras, como as “internacionais” de Pataias. Foi nessas matas arenosas, que o uniforme laranja privou de perto com as cores da fina flor mundial dos orientistas veteranos, ao competir sem qualquer complexo no WMOC`08 (grande experiência…enormes tareias).
Recordo também com emoção, uma cena em Palme-Barcelos, onde o meu fato garrido passou despercebido a quem passava, estando eu preso num buraco até ao pescoço e a solicitar urgentemente de auxílio. Quem também não ligou nenhuma à minha sugestiva indumentária, em terras de S.Pedro do Sul, foi o meu interlocutor na conversa rocambolesca em “inglês da Jamaica”, enquanto não descobriu que ambos éramos “portugas” (autêntico “sketch” de revista).
Aconteceram outros momentos, gloriosos mas fugazes, onde o laranja brilhou com mais fulgor, quando o “espécie” subiu ao pódio pela primeira vez, num memorável evento em Melres ou quando festejei efusivamente a insólita vitória do meu escalão, no ranking regional de 2008 (o pessoal distraiu-se e pimba!..esse diploma ninguém mo tira).
Em contrapartida, o laranja esbatia-se nos fantasmagóricos cenários de nevoeiro, não funcionando como farol reflector e orientador, tendo-me provocado uma das maiores frustrações desportivas, quando numa etapa de “pedrolas” em Muas, fui obrigado a atirar a toalha ao tapete (incompreensível desistência, que ainda hoje me provoca pesadelos).
Estas imagens passaram-se vertiginosamente durante quatro épocas extremamente preenchidas, mas não houve oportunidade de lhes dar continuação, pois no início da quinta temporada sucedeu um facto inesperado – o “espécie” foi colocado na prateleira!
Ai julgavam que me tinha reformado de livre vontade? Pois não senhor! Isso foi um argumento falacioso que alguém fez constar. É hora de toda a gente tomar conhecimento do real motivo do meu afastamento. Para já e para que não restem quaisquer dúvidas, a minha reforma teve todos os contornos de compulsiva e ponto final.
No momento em que me aprestava para dar o derradeiro passo na bela “istória”, o ingresso num clube de nomeada, sou confrontado pelo aparecimento de um concorrente ao mesmo lugar. Para cúmulo, o tipo ainda era meu parente, proveniente do ramo duns tios afastados do Alto Minho, usando uma esquisita pronúncia do “nuorte”.
Contra factos não há argumentos e rapidamente me apercebi, que a um “espécie” jamais será permitido alcançar determinado patamar. Há lugares que só poderão ser ocupados por orientistas de verdade ou quando muito por um qualquer “berdadeiro” oportunista, com demasiada influência.
Apenas me restava aceitar o que me propunham e resignar. Em alternativa poderia ser “promovido” - como técnico de aconselhamento a orientistas, vítimas de loucas e atípicas pernadas ou sob stress pós-traumático de “mp`s” surpresa - só que o orgulho de “espécie” falou mais alto e recusei liminarmente proposta tão indecente. Publicamente eu teria decidido reformar-me, mas na realidade tinha sido afastado (um ignominioso golpe palaciano).
Deram conta que a própria “vozinha” da minha consciência (ou inconsciência?), se passou de armas e bagagens para o outro lado? Eu que sempre aturei as suas atitudes irreverentes e algo desrespeitosas. Nem dá para acreditar, a grande traidora!
Apesar de me estar vedada a participação nas provas (decisão prepotente e injustificada), pontualmente marco presença como incógnito (para aliviar a mágoa que me consome), fazendo um esforço para me manter actualizado, aproveitando as notícias frescas do Orientovar e umas consultas de rotina ao Oasis.
De qualquer modo, já deu para constatar que o meu “primo” não fez esquecer o “espécie”, dado que a falta de categoria é idêntica - ou o sangue não seja o mesmo. Num aspecto o bato de certeza, as minhas “crónicas” obtiveram uma entrada média bastante superior ao seu deprimente “diário”.
Ainda não recuperei do choque sofrido e tenho sérias dúvidas que isso possa vir a acontecer (o psicanalista afirma que o bichinho continua lá), mas se estas linhas não tiverem mais nenhum efeito terapêutico, pelo menos vão atenuando a saudade. Entretanto, por via das dúvidas, vou seguindo um tratamento alternativo recorrendo a um néctar dos deuses da região duriense, hic! - ”ganda remédio”.
Eu vou andando por aí (até a minha antiga frase de despedida me usurparam) e façam o favor de passarem umas Festas Felizes.