Inicialmente, achei que a singular ideia de realizar uma prova de orientação na Coudelaria Alter Real, residência oficial da equídea raça “Lusitano”, pressupunha uma falta de respeito pela classe orientista. Onde já se viu, misturar atletas dum desporto de fino trato, com cavalos, éguas, potros, burros e afins? Depois de meditar e bem analisar a situação, concluí precisamente o contrário. Seria um novo momento histórico e um privilégio para a família da Orientação ter uma nova oportunidade de livre acesso a mais um “santuário”. Simultaneamente, poderíamos provar que os nossos “puro-sangue” são de tanta qualidade, quanto os ditos “lusitanos”. Ainda não me habituei às constantes surpresas que o GD4Caminhos nos reserva.
Ao penetrar na propriedade, tive a agradável sensação de que seríamos uns hóspedes com tratamento vip. Secretariado num pólo do museu, estacionamentos em redor dos picadeiros e cavalariças (donde se fez ouvir uns resfolegares de boas vindas), partidas junto à enfermaria cavalar, chegadas em pleno centro hípico. Enfim, as instalações da coudelaria encontravam-se por nossa conta. Mas estas mordomias obrigavam-nos a dar uma resposta condigna. Com condições logísticas excelentes, só nos restava tomar contacto com o teatro de operações e ter um comportamento desportivo à altura.
Por respeito aos nossos caprinos anfitriões, a prova deveria ser efectuada com garbo e altivez, em ritmo veloz e gracioso de corcel. Não poderíamos passar vergonhas. Acontece que, no que me diz respeito, o desgaste da dupla jornada do dia anterior deixou algumas mossas musculares. O “espécie” já puxou demasiada carroça, portanto o máximo que eu poderia oferecer, seria uma humilde, mas corajosa corrida de cavalo cansado.
A etapa traçada sobre distância longa, com reduzido desnível, não configurava grandes dificuldades, o que vinha mesmo a calhar para a tal cavalgada desenfreada, que a maioria dos participantes tinha capacidade para efectuar. Os seis quilómetros e dezoito controlos, pareceram-me que iam ser um verdadeiro festim para os meus companheiros de escalão. Tinha de me cuidar para não ser trucidado pelos acontecimentos – sei bem quem tenho! Se os meus craques tomassem o freio nos dentes, eram meninos para galopar em 6/7 minutos ao quilómetro. Que feitas as contas, me deixavam com uma margem de erro reduzidíssima. E eu que me sentia tão estafado…
Apontei para uma média de quatro minutos por ponto, o que resultaria num trote de 10/11 ao quilómetro…o que nem deslustrava, para uma velha pileca carregada de mazelas! Como sou um desmancha-prazeres e um saco roto, que não consegue guardar as notícias agradáveis, conto já que acertei na muche. Sessenta e dois minutos de grande sacrifício, mas que me souberam pela vida. De matemática entendo eu, apenas não encontro a fórmula ajustada na maioria das vezes, hehehe!
Quando arranquei para a prova, começou de imediato a chuviscar e ainda não tinha chegado ao segundo ponto, sou apanhado em plena área aberta por uma pesada bátega de água, que até me entupiu um ouvido, mas o que entra por um sai pelo outro e lá dizia um saudoso atleta – “chuva civil não molha orientista”.
Não queiram saber como fui fustigado, chuva tocada a vento e a bater-me de lado, quase me atirava para as ervas (safei-me por ser um moço com lastro). Transportava a firme ideia que teria de correr o máximo e sendo assim, não eram uns simples aguaceiros que me iriam importunar a passada. É verdade que tive de apelar a elevado espírito de sacrifício, o que só veio dar mais valor à minha progressão, para ultrapassar o estado calamitoso do terreno, completamente ensopado, que o tornava pouco consistente e me obrigava a enterrar na lama até às canelas.
Eu bem queria pisar suavemente de charco em charco, mas não consegui melhor que um arrastar de arado. Apesar de sentir dificuldade na minha corrida de cavalo cansado, nem tudo era negativo, pois os pontos iam aparecendo sem qualquer problema técnico. Reentrância aqui, “pedrola” acolá, irritante vedação além, realizei uma sequência de pontos muito razoável, que, perdoem-me o absurdo, quase poderia afirmar que os fui picando em “pezinhos de lã”. Pelo menos até ao ponto 10 foi exactamente como descrevi – lento e atinado.
Entretanto, no trajecto para a décima primeira baliza, que dava início a um trio de pernadas mais exigentes, surge-me um obstáculo de monta. Uma linha de água, ladeada por duas íngremes escarpas, forradas de vegetação espinhosa. Ou dava uma grande volta, ou optava por descer os penedos. Nestes momentos de indecisão, o “espécie” não tem problemas, se pode complicar, para quê facilitar? E zás, tal qual um cavalo selvagem (o distinto garrano do Gerês), proponho-me descer acrobaticamente as “pedrolas”, mas pelo lado mais inclinado, que é para dar mais emoção à prova. A “Santa Maria das Espécies” estava atenta, não me deixando escorregar e ainda me orientou para um providencial carreiro, fruto da passagem de anteriores companheiros. A sorte protege os audazes, diria eu – “ou os nabos!” – “cala-te ó vozinha arreliadora!”.
Ao controlar o ponto das telecomunicações (125) – “alô base, acaba de passar o espécie com 41,41, um formidável tempo…uops! Esqueçam…este não conta para nada!”. Havia uma certa confusão na zona, por ser o ponto de controlo da passagem dos elites e onde “acampavam” os nossos “paparazzis”. Aproximo-me novamente da linha de água, que neste local parecia mais um traço bem grosso e vejo a correr o “enviado especial”, mortinho por me apanhar outra vez com os pés de molho.
Ele foca a objectiva, eu faço uma artística pose de modelo, mas para contrariar, em vez de uma prova de mergulho, prefiro efectuar um atlético salto à Nelson Évora, de margem a margem, estragando o retrato ao repórter (e as minhas costas). – “Desculpa Bino, para a próxima mergulho de cabeça, palavra do espécie, hehe”.
Aquela desmiolada atitude radical (não há maneira de eu perceber que já sou um cota), desconjuntou-me as dobradiças e veio prejudicar ainda mais, a minha já desgastada corrida de cavalicoque. Esta contrariedade apareceu em má altura, porque a partir do ponto 13, a ordem era para galopar a toda a sela. Cerrei os dentes, fiz das tripas coração, deitei para trás das costas a dor incomodativa e trotei aquelas pernadas o melhor que podia. Podem ter a certeza que corri como se nada fosse, não dou desculpas esfarrapadas. Se mais não andei, foi porque as “ferraduras” me pesaram e ponto final.
Para meu pesar, não consegui pôr a vista em cima da bela manada de éguas que por lá pastava e quase sem dar por isso, acabei por realizar uma etapa sem qualquer pastorícia, não tendo evitado os atascanços naturais, em virtude da quantidade de atoleiros que tivemos de percorrer. Atrevo-me a afirmar, que foi a prova mais limpa que jamais terei efectuado (no meio de tanta lama e bosta é um milagre, hehe). Sinto-me de tal maneira satisfeito, que tendo nós utilizado domínios, onde a actividade equestre é rainha, não me coíbo a dar um sonoro relinchar de garanhão, hihihihi!