Fair-play…ou não

Já várias vezes abordei este tema que enaltece o espírito desportivo, que em termos pessoais me sensibiliza profundamente (apelidem-me de lamechas que não levo a mal) e que felizmente na nossa modalidade vai acontecendo, não tão raras vezes, como à primeira vista possam pensar.

Eu que fui alvo de comportamentos de elevadíssimo fair-play (crónica “Solidariedade”) e senti também na pele a ausência dele, noutras ocasiões para esquecer (como relatei no “É preciso ter galo”), não podia deixar passar em claro um belo momento, do qual fui testemunha e que me levou às lágrimas. Porventura, analisado por outro prisma, alguém mais intransigente o poderá considerar um acto ilegal, mas toda a gente sabe qual é o meu entendimento sobre certas e famigeradas “atitudes anti-regulamentares”.

O episódio (já o aflorei ao de leve) tem como cenário a Herdade do Vale, em Vendas Novas, onde se disputava o apuramento para o Campeonato Nacional Absoluto da época que acabou de findar. Aqueles que foram protagonistas desta prova, com certeza se recordam das altas temperaturas que se faziam sentir, que influenciaram negativamente algumas prestações e ocasionaram diversas desistências por desidratação e fadiga.

Foi precisamente de extremo cansaço e falta de líquidos, que o super-veterano e irredutível “Quim Durão” foi vítima. Na altura seguia com um companheiro de escalão, que entretanto havia alcançado, apesar de já se encontrar em condições físicas periclitantes, pois segundo ele “a cabeça pesava como chumbo”, mas nem por sombras lhe vinha à ideia parar para descansar e muito menos desistir (isso é conduta de “espécies”).

O seu adversário notando que ele não se encontrava em condições de continuar sozinho, optou por o acompanhar, apesar de ter a percepção de que o poderia largar a qualquer momento e tendo em conta que tinha partido dois minutos antes, seria a melhor opção a tomar em termos desportivos (digo eu, que sou um tipo insensível e ferozmente competitivo, hehe).

No entanto, esquecendo prováveis rivalidades (pertencem a clubes diferentes) e demonstrando um ímpar sentido de solidariedade, manteve-se sempre a seu lado, até que nos derradeiros metros do percurso, entre o “200” e o “finish”, o “Grande Durão” sofre um desfalecimento e tomba por terra, lúcido, mas completamente ko. De imediato foi assistido por atletas que haviam terminado, mas o seu parceiro de jornada continuou ali ao seu lado, para o que desse e viesse, sabendo que mais nada poderia fazer para o ajudar. Ou será que podia?

E foi neste momento a transbordar de emoção, que surge o “espécie” para terminar a sua prova e testemunha o gesto impulsivo e simultaneamente comovente de “Jo Roomberg”, a retirar o SI do dedo de “Quim” e a percorrer os últimos metros para descarregar ambos os “chips”. Na sua perspectiva, “Quim Durão” não merecia desistir, não naquele momento, depois do que tinha sofrido para ali chegar.

Fazendo fé na sua aparente serenidade e postura algo sóbria, julgo que o “nosso” escandinavo adoptado tinha a perfeita noção, que esta atitude de desportivismo o poderia prejudicar em termos classificativos, mas na sua óptica, esse era aspecto perfeitamente secundário, talvez até irrelevante. O que de certeza não o incomodou e provavelmente nem teve consciência desse pormenor (?), foi o facto de ter dado uma valente “descompostura” ao regulamento. A filosofia competitiva dos nossos septuagenários é francamente enternecedora.

Considero-me privilegiado, por o destino me ter proporcionado momento de camaradagem tão sublime, só possível em indivíduos com cultura cívica e desportiva acima da média e sobretudo por ter ocorrido entre dois atletas, que são o maior exemplo de longevidade na Orientação nacional.

Amigo “Jo”, o seu gesto obrigou-me a chorar, homem! 

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