O Jogo do Pau Português - À conversa com Mestre Nuno Russo e o Professor Nelson Neto

 

O Jogo do Pau Português é uma das artes marciais mais antigas do povo lusitano e das mais acessíveis aos cidadãos de então. Há quem lhe chame também de Esgrima Lusitana (esgrima de varapau, obviamente), nome que segundo o Mestre Nuno Russo também pode ser atribuído a esta arte.

 

Neste terceiro capítulo integrado no conjunto de reportagens da Aula de Esgrima Histórica da Sala de Armas de Algés a 15 de Fevereiro, vamos conhecer esta arte considerada a arte marcial mais eficiente com o recurso a um bastão. Vamos conhecer também um dos mestres mais conceituados dela, assim como o professor Nelson Neto seu aluno e seguidor, a quem o Mestre Nuno Russo prepara para dar continuidade ao seu trabalho.

 

A sua presença neste evento de Esgrima Histórica vem a confirmar a amizade, coesão e junção de sinergias entre Mestres de diferentes escolas e artes em prol da preservação destas artes. Eles estão a trabalhar em conjunto na organização do Campeonato Mundial de Artes Marciais Históricas que irá decorrer nas Caldas da Rainha com um diversificado conjunto de modalidades.

 

O Jogo do Pau é praticado com varapau ou cajado, um instrumento de trabalho e simultaneamente uma arma do dia a dia das pessoas.

 

Introdução ao Jogo do Pau Português pelo Mestre Nuno Russo:

 

«A técnica de luta com pau que conhecemos mais moderna, tem tradição no Norte de Portugal principalmente no Minho. Depois espalhou-se por Trás-os-Montes, Beiras e outras regiões, tendo sido o seu maior desenvolvimento concretamente em Terras de Basto, Terras de Bouro, Arcos de Valdevez e Fafe. Esta é a origem do Jogo do Pau actual nos finais do século XIX.»

 

«Contudo o Jogo do Pau é algo muito mais antigo, já na época do Rei D. Duarte vem mencionado no livro “A arte de cavalgar em toda a cela”, e outros do século XVI explicam o trabalho da espada com mão e meia e com o montante, em que os nomes dos ataques e das defesas e da táctica, principalmente da táctica de luta com vários adversários que é exactamente a mesma que se utiliza no Jogo do Pau e que ainda hoje é usada. É a mesma táctica e a mesma técnica adaptada ao varapau, que se utilizava na Idade Média.»

 

«Há uma relação intrínseca entre o trabalho do pau e o trabalho das espadas. É evidente que as espadas eram de quem tinha dinheiro que eram os nobres, ou quem numa batalha roubava uma. O povo não as tinha e usava tudo o que tinha à mão. Na Batalha de Aljubarrota o rei não conseguia armar toda a gente e muita gente ia para lá munida de varapau, cajado e enxada, era o que tinham em casa e levavam. Isso é histórico.»

 

«A técnica guardou-se na tradição popular e chegou aos nossos dias intacta, com a pureza toda, e isso é que é muito interessante porque jogos de pau existem por todo o mundo. Em todo o mundo existem lutas de pau, desde os países africanos, da américa latina, Europa. Em tudo o que é competição nós ganhamos sempre. A nossa técnica é muito superior às outras técnicas e porquê? As outras técnicas estilizaram-se porque deixaram de ser utilizadas na realidade. Aqui na nossa terra como é um país um bocadinho subdesenvolvido, como se sabe, o Jogo do Pau chegou intacto até à nossa altura. Eu tenho 66 anos ainda assisti em Cabeceiras de Basto a uma zaragata daquelas à antiga portuguesa. Havia uma exibição de uma escola e apareceram lá uns tipos na Feira e começaram a mandar bocas, a desafiar e a Feira acabou toda à paulada como antigamente e como era tradição pelo século XIX todo e princípio do séc. XX, as grandes pauladas nas feiras que era a tradição daquela zona do Norte, as autenticas batalhas campais. Eram os homens à paulada e as mulheres cá de fora à pedrada para defender os maridos.»

 

 

Agora em modo de conversa com o Mestre Nuno Russo e o Professor Nelson Neto.

 

AMMA: A técnica em si requer muito empenho como em qualquer arte de combate, mas é muito difícil o Jogo do Pau?

 

Mestre Nuno Russo: O Jogo do Pau não é fácil, mas não é completamente difícil. O Jogo do Pau tem uma técnica já muito apurada. Eu jogo o Pau desde os meus 14 anos e tornei-me profissional a partir dos 18 anos e Jogo do Pau está no programa de educação física das escolas, não nos obrigatórios mas nos facultativos. Dei aulas na faculdade durante 6 anos, começando ainda no antigo ISEF na cadeira de desportos de combate do Prof. Almada e o Jogo do Pau fazia parte e quem chumbasse o Jogo do Pau chumbava o ano. Depois passei para a Faculdade de Motricidade Humana, onde lá dei aulas 4 anos numa cadeira chamada Propedêutica das Actividades Desportivas. Havia várias modalidades à escolha e quem escolhesse o Jogo do Pau tornava-se cadeira obrigatória e quem chumbasse, chumbava o ano. A técnica do Jogo do Pau está mais apurada do que qualquer outra no mundo e porquê? Já era porque era praticada pelo povo para o combate real. A partir de mim, com um aluno que tive e praticou comigo durante oito anos e que era professor de Biomecânica no FMH eu disse-lhe: João, vamos levar a técnica tradicional do Jogo do Pau para o gabinete de Biomecânica. Daí fizemos um estudo para tirar o máximo de proveito técnico com o mínimo de esforço e evoluiu muito. Isto ainda antes do 25 de Abril.

Ao Jogo do Pau Português também se chamava Esgrima Nacional (Esgrima de Pau) ou Esgrima Portuguesa. Como viemos a descobrir, a génese do Jogo do Pau era muito antiga, o Mestre de Armas de um Infante português do Séc. XVI, apresenta um combate de um contra dois com montante, a técnica é sem tirar nem por a técnica do Jogo do Pau. Assim passamos a chamar também de Esgrima Lusitana. Eu fiz a minha própria escola que é a “Escola de Esgrima Lusitana do Santo Condestável” porque é o meu patrono. Nasci no dia da primeira batalha a sério de D. Nuno Álvares Pereira, a Batalha dos Atoleiros e nasci lá perto em Fronteira. O meu pai pôs-me o nome de Nuno em homenagem a ele com uma grande devoção a S. Nuno. A minha escola não tem a ver com as outras armas medievais, apesar de o pau também ser considerado uma arma medieval. Os próprios cavaleiros também trabalhavam o pau, não era só as espadas, as lanças e as massas de armas. Ao princípio em vez de treinarem com as espadas que usavam nas batalhas treinavam com paus, depois começaram a usar para treino espadas mais beras e não as que usavam em combate. Portanto tenho como nome da minha escola o Santo Patrono, S. Nuno de Sta. Maria, o Santo Condestável.

Quanto à técnica do Jogo do Pau, neste momento está muito avançada. Não há ninguém que nos toque. Eu com trinta anos corri o mundo a desafiar os Mestres de Artes Marciais, na China, Japão, Tailândia, Vietname, Coreia, e fui desafiar o Mestre lá da escola, não um aluno. Os que aceitaram, fiz combates contra espadas, contra paus sem uma única protecção e “mandei-os todos para o Hospital” sem um toque. Portando a nossa técnica é muito avançada e para ser bem feita exige muito treino. Não se pode treinar como hoje em dia há muita gente que pretende treinar o Jogo do Pau pela Internet. Não pode ser, exige muito trabalho, muito treino e muita dedicação. Para ser bem feito tem que ser.

 

AMMA: Costumam fazer a técnica de um para um, ou também de grupo?

 

NR: Na técnica de um contra um o nome antigo era de “Técnica Contra-Jogo” e deixámos ficar. Jogo no fundo é um treino, como os japoneses no Judo chamam de Randori , é um combate de estudo de treino, não é um combate para matar o outro e tal. No meu tempo no Jogo do Pau não havia controlo e os Mestres antigos diziam “A culpa é sempre de quem leva porque não se defendeu”. No meu tempo o Jogo do Pau era sempre a bater e para partir. Hoje em dia foi introduzido o controlo e introduzi a parte desportiva o combate com protecções porque hoje em dia se você tiver um filho não o vai por numa competição do Jogo do Pau se for para aleijar. Portanto introduzimos o combate com protecções para competição. Para o desporto tem que ser. O caso da esgrima, também na esgrima histórica fazem competição com os miúdos com estas protecções, andam a treinar para um objectivo e também é a parte desportiva. A Esgrima Olímpica teve aquela evolução toda, desde as espadas medievais até à espada do Séc. XVIII que é aquela que se usa na Esgrima Olímpica, a espada, o florete, etc. A esgrima olímpica para se actualizar nos tempos em que vivemos teve que se tornar num desporto de competição e hoje em dia é um desporto olímpico. No Jogo do Pau também tivemos que o  transformar para o tornar numa parte desportiva, em que os combates são feitos, a técnica é a mesma, tentamos preservar ao máximo a integridade da técnica, porque a essência do Jogo do Pau é o combate real, tentamos preservar com as regras o máximo dessa integridade mas a competição é feita também com protecções.

Temos os combates de um para um, assim como os de inferioridade numérica. Pode ser contra 2, contra 3, contra 4… há técnicas para isso tudo.

 

AMMA: Qual é o seu Mestre de referência? O que o marcou mais.

 

NR: Ainda bem que perguntou isso, que vou falar deste nome, mas deixe-me explicar primeiro… eu fui aluno dos bons mestres de todo o país, no tempo em que havia bons Mestres, hoje já não é tanto assim. Alguns Mestres já não têm aquele carisma, aquela técnica, aquela eficácia de antigamente. Isto decaiu muito sobretudo em certas zonas do país, decaiu muito e as pessoas hoje em dia não se preocupam tanto com a técnica e a veracidade da técnica do Jogo do Pau. Preocupam-se em ter alunos mesmo que não sejam muito bons e ter muita gente e fazer propaganda pela Internet e dali não passa. Antigamente havia Mestres muito bons e eu fui aluno de todos. Não fiz mais nada a vida toda, corri o país todo onde havia Mestres bons. Mas quem me mandava lá e ao princípio me pagava do bolso dele, foi o melhor Mestre que havia na altura que era o Mestre do Ateneu Comercial de Lisboa o Mestre Pedro Ferreira. Esse para mim, naquela época em que eu aprendi, era o melhor Mestre do Jogo do Pau, não havia outro como ele. Era um homem que sabia as técnicas todas. Ele era de Melgaço, da zona do Minho, aprendeu a técnica toda do Minho. No Minho a especialidade era o combate em inferioridade numérica. Você por exemplo saía de uma aldeia para outra que é ali a dois ou três quilómetros e ia namorar uma miúda aquela aldeia já sabia que lhe saiam ao seu encontro dois ou três ou quatro. Ou eram amigos, ou amigos do namorado dela, ou eram amigos do irmão, bastava que fosse de outra aldeia, a rivalidade era tão grande entre aldeias que havia logo combate e não saia ao encontro dele só uma pessoa, eram sempre mais que um. Eles tinham que se especializar na técnica contra mais adversários. Isto para lhe dizer que o Mestre Pedro Ferreira começou no Minho o percurso dele com três anos. O pai dele morreu ainda não tinha ele três anos e foi criado pelo avô. Naquela altura toda a gente jogava ao pau e não era assim tão fácil. O Jogo do Pau era ensinado por Mestres profissionais, principalmente ali no Minho, depois vieram até Lisboa ensinar, e naquela altura as aulas eram particulares. Dez minutos de sessão era um dia de salário. Mas toda a gente jogava. Então o seu avô era pastor levava os animais para o campo, com frio e às vezes neve, e para o miúdo não ter frio, começou a ensinar-lhe umas brincadeiras do Jogo do Pau. Mas o miúdo gostava muito e foi aluno dos grandes Mestres da altura, os chamados Varredores de Feiras que eram tipo ninjas. Chamavam-se Varredores de Feiras porquê? Eles eram profissionais do Jogo do Pau e iam para as feiras para arranjar zaragata com aquela malta toda, com muitos para se treinar. Normalmente levavam um cavalo e pagavam a um miúdo (isto era muito vulgar) para esconder o cavalo atrás de uma árvore ou de uma moita lá no meio da feira. Eles estavam entretidos ali a “partir cabeças” e assim que estavam cansados saltavam para o cavalo e saiam. Esses eram os chamados Varredores de Feiras. O Mestre Ferreira foi aluno de muitos desses Varredores de Feiras, dos melhores Mestres daquele tempo do Minho e quando veio para Lisboa, aprendeu a escola toda de Lisboa também com os melhores Mestres de Lisboa. Veio a ser Contra-Mestre e depois Mestre aqui em várias escolas especialmente no Ateneu Comercial de Lisboa. Ele era como se fosse meu pai e eu filho dele. Foi ele que me mandou ir a todos os Mestres com as referências dele e pagava-me. Naquela altura pagava-me do bolso dele as viagens até lá, a estadia lá. Às vezes estava lá três meses outras vezes cheguei a estar seis meses e ele é que me pagava tudo, porquê? Ele queria fazer a recuperação, a síntese de todas as técnicas, e ele como passou a fazer a escola de Lisboa e tinha coisas que já tinha esquecido e então quis recuperar aquilo tudo. Eu trazia-lhe aquilo e ele lembrava-se. O que é que ele fez? Fez uma escola que nós chamámos mesmo a Escola Mestre Pedro Ferreira, que é anterior à minha, que era a síntese de tudo quanto era bom em termos de combate, de resto havia muita coisa que era para exibição que não interessava nada, e fez a síntese de tudo o que era bom na escola dele. Foi durante muitos anos o Mestre aqui no Ateneu Comercial de Lisboa. Foi a minha principal referência, mas também devo muito do que aprendi a outros grandes mestres: mestres Eulías Gamero, Abel Couto, José Ribeiro Chula, Silvino Melro estes em Lisboa e na zona Sul e mestres Ernesto de Bucos, mestre Portela de Abadim, mestre Quéo em Fafe e muitos outros jogadores e mestres minhotos.

 

AMMA: Como foi a sua experiência com o Jogo do Pau no estrangeiro? Teve convites para ir lá fora?

 

NR: Primeiramente quero frisar bem que o actual Jogo do Pau não tem interferência nenhuma vinda do estrangeiro. Quando eu chegava lá para desafia-los e sentia alguma dificuldade, eu tinha que encontrar a minha solução na minha técnica. Não andava a copiar as coisas que eles faziam, tentava e sempre encontrei. Depois comecei a ser conhecido e começaram-me a convidar principalmente para a França, Suíça, Alemanha, ou às vezes vinham cá eles também e outras vezes ia lá eu dar cursos e estágios. Hoje também já tenho um representante de Esgrima Lusitana no Brasil. Está lá a dar aulas. No Jogo do Pau Português, isto parece ridículo, mas houve uma altura em que eu tinha mais alunos lá fora do que em Portugal. É vergonha dizer isto mas é verdade. Agora não viajo tanto por motivos familiares.

 

AMMA – Quais são as maiores dificuldades que encontra cá em Portugal?

 

NR: As dificuldades, para já é que ninguém dá apoio a isto. O Ginásio Clube Português dá e tem sido a única entidade que tem ajudado o Jogo do Pau. Tem mantido o Jogo do Pau. Mas dá-nos sempre os piores horários, dei lá aulas 30 ou 33 anos em que os meus horários eram quando as outras aulas todas acabavam. Começava às 22h00 e acabava à meia-noite. Hoje em dia é à hora do almoço. Fui operado, o Nelson é que me está lá a substituir. Eles ajudam mas é isto… O Jogo do Pau, ao nível da cultura, já fomos convidados para nos candidatarmos a património. Foi lá a entidade que faz essas candidaturas e convidou-nos, mas era impossível de se fazer, pois as exigências que aquilo dava e as escolas de Jogo do Pau que há são poucas e são todas rivais. Ninguém se entende, era uma grande confusão. Já houve duas federações e ninguém se entendia e acabaram as federações. Essas federações também não interessavam, pois o estado não ajudava nada pois diziam: “vocês têm pouca gente” e isto é um ciclo vicioso, temos pouca gente porque não somos ajudados, e como não somos ajudados temos poucas pessoas. O estado nunca ajudou. Eu estive lá na faculdade porque o Jogo do Pau estava nos programas de educação física das escolas. Houve uma altura em que saiu, agora voltou a entrar no programa, vou tentar entrar de novo na faculdade, não quer dizer que consiga. Ninguém dá uma ajuda nisto, estão-se nas tintas para o Jogo do Pau. Utiliza-se o Jogo do Pau para exibições, porque é uma coisa emotiva e as pessoas gostam de ver na altura mas ajudar ninguém ajuda nada, não temos o mínimo apoio seja de que entidade for, nada mesmo nada, é só pelos próprios meios. Esta postura das entidades responsáveis é vergonhosa. Em todos os países do mundo os seus respectivos Jogos de Pau tradicionais são ajudados pelos governos. E não precisamos de ir mais longe, em França as técnicas tradicionais com pau e bengala estão englobados e são protegidos pelo comité nacional de Boxe francês. E na nossa vizinha Espanha os jogos de pau tradicionais das ilhas Canárias, estão organizados numa federação subsidiada pelo governo que disponibiliza verbas e meios suficientes para a divulgação e desenvolvimento dos mesmos e decretou a sua prática nas escolas. O nosso presidente da Republica homenageia e honra o futebol e o atletismo português nas poucas vezes que tem bons resultados e declarou abertamente que em Portugal não existem desportos de segunda, mas das várias vezes que o nosso atleta Carlos dos Santos foi campeão do mundo de bastão português contra as outras técnicas estrangeiras, o presidente esteve-se completamente nas tintas apesar das várias informações que lhe enviámos.

 

AMMA: O que é para si ser aluno e “braço direito” do Mestre Nuno Russo?

 

Nelson Neto: É uma grande referência. Eu iniciei aos 14 anos os meus primeiros contactos com desportos de combate e andei sempre à procura do porquê do que praticava. Andei à procura de uma arte que tivesse a ver com armas, ouvi falar do Jogo do Pau e felizmente fui ao Ginásio Clube Português onde o meu primeiro contacto foi com o Mestre Nuno Russo e aí encontrei algo que vi que queria aprender e desenvolver. Agora dá muito trabalho, requer muito treino e  dedicação. Faço o que posso, tento dedicar ao máximo. Aliás eu alterei a minha vida toda, eu treino à hora do almoço e trabalho, sou arquitecto e à noite dou treinos. Tenho a minha Academia de Muay Thai, e aliás eu até fui para o Jogo do Pau porque também precisava de um escape, pois estava um pouco saturado com a vertente de competição. Satura muito porque às vezes não é só treinar atletas, também envolve capacidade para gerir interesses de Federações e interesses de entidades particulares e cansei-me um bocado disso, porque eu gosto é de treinar e de me dedicar. Se tenho alunos gosto de treinar e dedicar-me aos meus alunos e foi à procura dessa componente nas armas e entretanto comecei a treinar o Jogo do Pau com o Mestre Nuno Russo e fui conhecendo cada vez mais o Mestre e para mim tem sido muito bom e tem ajudado a nível pessoal e até a forma de eu interpretar as artes marciais. É de uma forma muito mais objectiva e muito mais real e mais concreta, até transmite muita disciplina e rigor como atleta etc. em si o Jogo do Pau já nos transmite um envolvimento de rigor, nós temos que ser rigorosos no Jogo do Pau…

 

NR: É que o Jogo do Pau é para bater mesmo. Nós só controlamos naqueles que começam agora, a partir de uma determinada altura já ninguém controla, é mesmo para bater e quem quiser que se defenda. Se não tiver um rigor no treino e não se defender leva uma paulada e pode ser fatal.

 

NN: É preciso querer e disponibilizar a nossa vida para nos dedicarmos a essa arte, não é só teoria. A teoria para fazer dois ou três movimentos é fácil, o problema depois é a sequência, continuar e insistir e do ponto de vista de treino há coisas que correm mal, somos criticados constantemente porque as coisas não estão bem e se desistimos à primeira crítica não evoluímos. É preciso continuar e insistir. Insistir e acho que a palavra chave é a humildade e dar apreço às pessoas que sempre nos ensinam. As pessoas que nos ensinam é que nos vão valer tanto no presente como no futuro e isso é muito importante e nós só conseguimos ser ou ter qualquer coisa se a pessoa que nos ensina puxar por nós e tiver interesse em puxar por nós. Se eu faço outras coisas de modo a ser independente mais tarde ou mais cedo vou-me autodestruir. Eu não consigo sozinho. Nós precisamos uns dos outros. Faz parte do Ser-Humano. Neste caso o Mestre Nuno tem-me ensinado no Jogo do Pau até no ponto de vista no rigor para as minhas aulas de Muhai Tai. Sigo atletas desde pequeninos já há alguns anos e sobem para o ringue e combatem Muhai Tai. São golpes direccionados ao corpo e bastante fortes embora na classe amadora seja com protecções,  a classe profissional é já sem protecções e o Mestre tem-me ajudado muito nesse ponto de vista, em observar as artes marciais de outra maneira. Do ponto de vista da Esgrima Lusitana, do Jogo do Pau, eu vou fazer esta arte para o resto da minha vida. Já estou entregue a isto há 10 anos e por isso não vou desistir nunca. (entre risos) só se o Mestre me der uma paulada nos joelhos no meio do treino ou se o Mestre me anular mesmo durante os treinos. Se não for essa a causa eu de certeza absoluta vou sempre defender a técnica que aprendi. Também há outra coisa que eu sinto, as pessoas não acreditam naquilo que lhes dizem, nem no que praticam. As pessoas fazem as coisas de forma superficial, por isso é que o Mestre estava a falar da Internet, é tão superficial que há uma teoria na Internet absurda, aquilo é só para mostrar umas imagens, um texto e para se valerem de coisas não são na realidade. É completamente errado e falso, não é esse o caminho.

 

NR: É como lhe disse, a essência verdadeira e pura do Jogo do Pau, é o combate e essa essência é o que eu pretendo manter senão estamos a falsificar aquilo que é nosso. Ensinar o Jogo do Pau eu posso fazer. Já ensinei muitos Ranchos Folclóricos, até já fiz coreografias no Teatro Dª Maria II, isso são coreografias não tem nada a ver com o Jogo do Pau. Uma das peças de teatro que foi à Europália, quando entramos para a comunidade europeia um evento cultural. Uma das classes de dança que lá entraram da Olga Roriz tinha o Jogo do Pau. Eles é que coreografaram e eu é que dei os movimentos técnicos. No Teatro Dª Maria II a peça «O crime na aldeia velha» do Bernardo Santereno tinha uma parte do Jogo do Pau e eu é que treinei os actores o João de Carvalho e o José Neves que são actores profissionais e eu é que fiz a coreografia e isso são coreografias não é Jogo do Pau isso é para espectáculo é isso que se pretende. É engraçado que aparece na literatura portuguesa: o Aquilino Ribeiro, o Miguel Torga, o Camilo Castelo Branco, falam imenso do Jogo do Pau. A Agostina Bessa Luís também fala do Jogo do Pau.

A ideia do Jogo do Pau é outra: o combate independentemente da adaptação ao espectáculo e é essa que tem que se manter.

 

NN: E esta linhagem que o Mestre nos transmite que veio do Mestre Pedro Ferreira que o Mestre Nuno fez o seguimento e evolução, isso tem que continuar, tem que existir e tem que passar para outras pessoas. Isso não se pode perder de modo a diluir e facilitarmos a técnica que é o que nos dá suporte cultural que é essa técnica do Jogo do Pau é a base. Isso não se pode perder. É a essência que se passa de Mestre para aprendiz e esse ensina a outro e outro sempre com respeito de quem ensina. Isso é que na minha noção é tem realmente valor e acreditarmos profundamente para que toda a estrutura realmente progrida e avance.

 

AMMA: Há graduações no Jogo do Pau?

 

NR: As graduações sempre houve. As primeiras graduações que o Mestre Pedro Ferreira instituiu tinham a ver com a tradição da terra dele que é Melgaço e tem a ver com a tradição cultural do povo. O povo português e principalmente naquela zona do Norte era muito religioso. Os rapazes quando iam à primeira comunhão (finais do Séc. XIX e princípios do séc. XX) levavam uma braçadeira amarela, quando faziam a comunhão solene levavam uma braçadeira verde. E o Mestre resolveu instituir que os Jogadores do Pau usassem uma cinta como se usava no Minho e em várias regiões do país como por exemplo os campinos no Ribatejo. Como era então, os rapazes adolescentes levavam uma cinta vermelha, que já era considerado jogador de pau e quando havia lutas entre aldeias eles estavam automaticamente recrutados para ir defender a aldeia. Diziam os Mestres antigos como se usa na tropa: “Estava Pronto”. Era um jogador que estava habilitado a combater a sério. Os homens quando casavam punham à cintura uma faixa preta. O homem mais importante da terra que era o regedor tinha uma cinta roxa. O Mestre Pedro Ferreira fez essa adaptação ao Jogo do Pau. Para os principiantes ele pôs a cinta amarela, para os intermédios a cinta verde, a cinta vermelha já para o jogador (comparado com o moço namoradeiro), a cinta preta para o instrutor (porque antigamente quem estava casado ensinava os filhos também) e o Mestre mais antigo usava a cinta roxa. Essa graduação que o Mestre instituiu foi baseada na tradição da terra dele. Como a minha técnica tem numa estrutura já feita e um programa técnico feito, tive que por mais graus entre as cintas. A amarela tem três graus, a verde tem três graus, a vermelha também. A preta já tem cinco até passar a roxo. Essa nós deixamos para o Mestre mais antigo que vinha da escola do Ateneu Comercial de Lisboa onde o Mestre Pedro foi ensinar e assim o decretou. Eu sou cinta preta de quinto grau, sou considerado Mestre, mas o Mestre mais antigo é que tem direito de usar a cinta roxa, e como há um Mestre vivo, a cinta passou para ele, e caso ele falecer antes de mim ela passa para mim.

 

Com esta entrevista ficámos a conhecer o Jogo do Pau Português, a sua história e a continuidade que o Mestre Nuno Russo e o Prof. Nelson Neto lhe estão a dar assim como aos seus alunos que preservam este aspecto do desporto nacional e da cultura.

 

O próximo tema tem a ver com o a apresentação do lançamento de um livro, o último de uma trilogia do escritor Ricardo Correia, também ele aluno da Academia de Esgrima Histórica na Sala de Armas do Museu Militar. O autor fala-nos do novo trabalho que vai ser lançado a 19 de Maio e que os volumes anteriores dessa trilogia não passaram despercebidos a um realizador Norte-Americano que já está interessado em fazer um trabalho cinematográfico baseado na sua história. Não perca esse quarto e último trabalho no âmbito desta Aula de Esgrima Histórica.

 

Texto e Foto: Pedro MF Mestre

 

 

Atenção! Este portal usa cookies. Ao continuar a utilizar o portal concorda com o uso de cookies. Saber mais...