Sinto-me deveras lisonjeado com a atitude inesperada do Grupo Desportivo União da Azóia, mas também estupefacto, pois não sei o que eles viram em mim. Isto de colocar o “berdadeiro” orientista em pé de igualdade com a nata da Orientação nacional, tem muito que se lhe diga, dá salero, só que sinceramente não louvo a intenção.
Então não querem saber que a Organização do Campeonato Nacional Absoluto fez questão que eu competisse num percurso idêntico ao dos melhores? E não satisfeitos com a ideia peregrina (e infelizmente regulamentar), ainda me convidaram a percorrer um traçado elaborado para elites. Eu? Que normalmente não dou muita boa conta do recado nos trajectos exclusivamente vocacionados para a veterania, que figura poderia fazer perante um mapa com tamanho grau de exigência técnica e física? Foi o preâmbulo de uma aventura mais empolgante que as da Isabel Alçada.
Depois de meditar no assunto, concluí que houve um equívoco qualquer. Toda a gente sabe que a prova de apuramento para a final do campeonato nacional tem de ser semelhante para todos os escalões a partir de H/D17. O que não havia era a necessidade de a nivelar por cima. Ou seja, os responsáveis pelos percursos, senhores de conhecimentos técnicos consideráveis, não tiveram pachorra para engendrar uns trajectos de grau de dificuldade médio, para que todos os participantes competissem ao mesmo nível? Esqueceram-se que iriam colocar os veteranos de 70 anos e miúdos de 16 ou 17, a ultrapassar os mesmos obstáculos (ou quase) das elites?
Quando analisei as informações para o meu escalão e esbarrei com 5.500 metros, 29 controlos e 340 de desnível, quase me ia dando uma coisinha ruim. Para colocar o cenário ainda mais negro, a prova realizou-se debaixo de uns abrasadores 34º. Mas o pior ainda estava para acontecer.
Calor, distância demasiada e relevo pronunciado já eram pormenores suficientes para criar alguma preocupação. Por isso, quando fui confrontado com um terreno extremamente agreste e a localização de pontos em locais impensáveis, sujeitando o pessoal a progressões de índole aventureira, a roçar a perigosidade, a preocupação foi-se transformando em apreensão e comecei a temer o pior e…medo…muito medo, que as vertigens me fizessem resvalar encosta abaixo.
A dada altura, com a adrenalina nos píncaros, no meio duma escalada, agarrado a um ramo de cactos (ou cardos, nem sei bem), evitando olhar a ravina onde estava empoleirado, finalmente fez-se luz no meu enevoado espírito - será que alguém adaptou uma prova de Aventura a uma competição de Orientação?
Até ao sexto prisma, tudo parecia correr dentro da normalidade, mas a colocação do “32”, junto a uma árvore no limite de uma ribanceira, deu um forte indício para o que se seguiria. Quatro pernadas à frente, o ponto “52” localizado num buraco escarpado de opção única, obrigou a uma progressão arriscada, onde a destreza física era posta à prova. Aqui, testemunhei a frustração de uma veterana, que não conseguindo transpor as “pedrolas” que o antecedia, decidiu desistir.
A partir dali, não tive qualquer dúvida que o elemento essencial para ultrapassar os pontos, seria a agilidade física e não a capacidade de orientação. Nós sabíamos (ou supúnhamos) onde as balizas deviam estar, a grande tarefa era chegar lá são e salvo e depois arranjar forças para conseguir voltar à normalidade do percurso, que o célebre ponto “70” é o principal exemplo. Descer para o picar foi difícil e perigoso (que jeito teria dado um slide de encosta a encosta), para retornar ao trilho foi extenuante e de progressão radical. E depois desta tareia ainda faltavam controlar catorze pontos! Se não estivesse acompanhado por mais cinco ou seis “aventureiros” de espírito indomável, com certeza teria abandonado naquele momento (uns malucos!).
No ponto de água, o número de atletas desistentes era de tal ordem, que fez lembrar a paragem do autocarro em hora de ponta. O objectivo primordial passou a ser o “seguir em frente” e nunca, mas nunca em circunstância alguma olhar para trás, seria o pânico inevitável (ai que alto que `tou!).
Outra regra básica imperou – nada de pensamentos negativos – “se queres vomitar a barra energética…força…mas por favor não penses; se sentes cansaço…assobia…canta…mas não penses; se o ponto não aparece à primeira…respira fundo…que dás com ele à quinta tentativa…mas não penses; se rasgaste o peito nuns galhos…vocifera…blasfema…mas não penses”.
Entretanto, já havia realizado uma descida louca para o décimo-primeiro ponto (e consequente escalada), onde a pernada exigia a técnica do rappel, mas tive de me desenrascar com a arte do “secue” (pronúncia do norte), o auxílio dos arames duma vedação vizinha e posteriormente o cravar as unhas até aos sabugos na encosta (tal qual pregos de alpinista…só que as uso curtas, o que redobrou os trabalhos).
Após a extenuante pernada de ida e volta ao “70” e de um outro ponto sem grandes aflições (uma excepção), reapareceram as progressões pouco ortodoxas, tive de me enfiar por uma linha de água e num emaranhado de vegetação agressiva, de modo a encontrar o esporão do “76” (o que eu sonhei com uma rebarbadora que me desbastasse aqueles verdes incómodos).
As balizas escondidas terminaram aqui, mas com todos estes aventureirismos, já deu para entender que o tempo de prova ia de vento em popa - uma desgraça que ultrapassava em muito a uma hora. Encontrava-me completamente esgotado e ia ter pela frente a pernada mais longa (800 mts), onde se poderia utilizar um trilho bastante irregular e pedregoso, que acompanhava a encosta, mas de inclinação ascendente e inquietante.
Finalmente alcancei o ponto 19 nas imediações da Arena (um quarto de hora a escalar), mas qual suplício, esperavam-me mais dois quilómetros e meio para os dez controlos em falta, num vaivém massacrante e desnecessário, que claramente não beneficiou o percurso e apenas me deixou à beira da exaustão. Alguns companheiros, não resistindo ao apelo do insuflável das chegadas, decidiram acabar com o sacrifício ali mesmo (se estavam em “casa”, porque razão iriam dar mais um passeio?)
Analisando a jornada pelo lado positivo (sou um optimista, hehe!), consegui terminar a prova mais dura dos último tempos (opinião corroborada por muita e boa gente), demonstrando uma resistência física, que eu julgava já não possuir. O pior é que a “aventura” me fragilizou irreparavelmente o arcaboiço para o dia seguinte.