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Duplamente Gótico

Evoluindo ao longo dos tempos, a velha “Scallabis” Romana foi-se transformando no ex-libris nacional da Arte Gótica. Ora, como o Campeonato Nacional de Sprint se iria realizar no coração do centro histórico de Santarém, o “espécie” teve a ideia peregrina de pretender equipar-se a rigor, usando o seu fato completamente negro, num gesto algo místico mas singelo, de homenagem à capital ribatejana – um “gótico” a percorrer o Gótico.

Mal transmiti este desejo à minha mulher, levei com um contundente – “não senhor, não vais fazer figura de parvo, isso é uma atitude sinistra” – “mas o preto até me beneficia a silhueta” – argumento em desespero sem qualquer resultado. Utilizei um conjuntinho cinzento, que foi o mais escuro que ela me permitiu. Como Deus não dorme, haveria de castigá-la mais tarde, com um “demorado passeio” pelos monumentos (hehe).

Na verdade, se não sou rapaz de usar botas pretas de cabedal, não aplico batôn ou rímel escuro, não ostento orelhas carregadas de piercings, muito menos transporto pesadas correntes presas aos bolsos e nem sou fã dos “Within Temptation”, porque me haveria de vestir de negro? Gótico por “gótico” fiquemos apenas pela vertente arquitectónica.

A prova constava de duas mangas de cerca de dois mil metros, com um exíguo número de controlos, uma dezena de manhã e nove ao início da tarde. Ao apresentar este género de percursos, o staff técnico do 20 Kms de Almeirim, clube anfitrião, parecia ter alguma carta na manga, mas afinal não passou de rebate falso.

Uma competição de sprint urbano, com tão poucas pernadas, sem nenhuma surpresa associada, iria colocar os amantes da velocidade em festivo delírio. Podiam e deviam ter-nos complicado a tarefa e “ratoeiras” não faltavam no casco histórico, mas preferiram dar-nos a hipótese de termos tempo para visitar os diversos monumentos de estilo Gótico, que abundam na cidade escalabitana.

Acontece, que a realidade veio confirmar os deficientes níveis de cultura de que sofre a família orientista. Salvo raras excepções, a maioria dos atletas desatou a correr que nem desalmados, não dando qualquer importância aos dignos representantes do Gótico. Então não é que apareceram uns “incultos” que realizaram cada etapa em menos de dez minutos! Demonstraram uma falta de sensibilidade artística de fazer chorar as pedras da calçada!

E a calçada foi mesmo um dos maiores problemas da prova, sobretudo para os azarentos, nos quais me incluo, que apanharam umas valentes bátegas de água durante o trajecto. Apesar da temperatura amena, os últimos a partir na manga matinal, foram presenteados com uma chuva certinha, que deixou o basalto e o paralelo extremamente viscoso.

Contudo, apenas me apercebi da pluviosidade (ai que distraído!), quando ao descer atabalhoadamente uns lanços de escada, tentando não deixar fugir uma expedita atleta veterana que teve o desplante de me ultrapassar (coisas de macho), escorrego perigosamente e só não cheguei primeiro que ela ao fundo da escadaria (em posição horizontal provavelmente, hehe!) porque o ABS dos travões “adidas” funcionaram na perfeição. Não fora este derrapante percalço e em vez dos meus “acelerados” 13,33 teria efectuado para aí uns surpreendentes 13,32!!!

Esqueçam as minhas estafadas justificações de mau pagador, há que assumir que a concorrência corre mais e hesita menos. Só para o primeiro ponto, uma pernada demasiado extensa para as minhas características ronceiras, quase perdi um minuto para a grande parte dos companheiros…e sem qualquer contratempo. Oh dura realidade! Que hei-de eu fazer? Estarei no limiar duma crise existencial?

Na segunda manga, com mais trezentos metros, menos uma baliza para picar e um par de pernadas longas a penalizar o “espécie”, consegui um desempenho idêntico ao da jornada inicial, calcorreando o “roteiro gótico” em pouco mais de catorze minutos. Estava cumprida a minha obrigação, despachei-me o melhor que pude e apenas lamento que o meu motor seja de baixa cilindrada. E vá lá que desta vez não apanhei o piso molhado. Para ser franco, julgo que o “Gótico” me caiu no goto.

Se me perguntarem – “Visitaste o túmulo de Pedro Álvares Cabral na Igreja da Graça? Transpuseste as Portas do Sol? Espreitaste os Claustros de S. Francisco? Foste pelo menos a Santa Clara?” – respondo com outra questão – “Acham que tive tempo?” – Vinte e oito minutos na soma das duas mangas é tempo insuficiente para tanta cultura.

Para atenuar a minha falta, efectuei uma visita de médico à Igreja do Seminário, que seria vergonhoso não o fazer, pois localizava-se no largo das chegadas. “Mas é um monumento Barroco, não Gótico, seu ignorante!”. - “Ai é? E os divinos queijinhos do céu do Convento das Donas são de que estilo?”. 

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quinta-feira, 28 de março de 2024 – 08:04:02

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